sábado, janeiro 06, 2007

RESUMO DO DEBATE NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

O texto seguinte é integralmente constituído por excertos respigados das declarações de voto dos Meretíssimos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional português que em Lisboa, 15 de Novembro de 2006, pela margem mínima de sete votos contra seis aprovaram a realização de um novo referendo ao aborto e a formulação da respectiva pergunta.

O profundo estudo subjacente que se adivinha bem como a qualidade dos argumentos e do discurso elaborado merecem seguramente uma leitura atenta e demorada da versão integral, disponível no endereço electrónico:

http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos06/601-700/61706.htm

Sendo, porém, certo que a maior parte das pessoas não pode dispôr do tempo suficiente para tal leitura, decidiram os editores, conscientes da gravidade da decisão que os portugueses, ou uma limitada parte do seu universo, terá de tomar no dia 11 de Fevereiro, seleccionar as passagens mais significativas e ao mesmo tempo facilmente compreensíveis para o cidadão não-especializado na terminologia e argumentação jurídico-constitucional. O princípio de selecção dos excertos foi, por conseguinte, a sua compreensibilidade, clareza e eficácia argumentativa para o debate que o próximo referendo irá promover e enquadrar. Compreende-se facilmente que o sentido geral desta edição decorra necessariamente do sentido para que apontam as declarações de voto disponíveis. A grande conclusão da profusão e acutilância do argumentário laboriosamente construído pelos Meretíssimos Juízes resulta clara - a única escolha responsável e reponsabilizante para o Legislador e para a classe política em geral, precavendo irremediáveis consequências duma eventual liberalização do aborto a pedido, é o voto pelo NÃO.

Optámos por organizar as citações por temas e não por autor/Juíz por nos parecer que, com esta estrutura, o leitor poderia seguir e assimilar melhor a demonstração de que estamos perante:

A) Um dilema entre dois direitos fundamentais constitucionalmente garantidos e que no caso de uma hipotética vitória do “sim”, seria “resolvido” pela radical e injusta, porque injustificada, supressão de um deles, do mais forte e fundamental se houvesse que hierarquizá-los: a inviolabilidade da vida humana.

B) uma pergunta mal-formulada, com falhas graves de clareza, objectividade e precisão, passível de induzir o voto no “sim” ao referenciar realidades futuras ("estabelecimento de saúde legalmente autorizado") dependentes de uma vitória do “sim”;
- referência despropositada posto que o próposito do referendo é saber o que os cidadãos pensam 1) do aborto “a pedido” da mãe 2) até às 10 semanas de gestação e 3) pago pelos contribuintes; o referendo não deve decidir circunstâncias contingentes: onde, por quem, ou a que horas, em que dias da semana. Sem a parte final a pergunta era mais sintética, mais limpa e mais isenta;
-
referência desnecessária porque se se pretende combater o “aborto clandestino”, nunca se poderia permitir o aborto em estabelecimentos não-autorizados.

C) uma redução pouco ou nada inocente do universo eleitoral aos residentes em território nacional, impedindo-se assim de votar aqueles emigrantes que, residentes em países de aborto liberalizado até às x semanas, bem conhecem o nível de abuso a que aí se chegou, tendendo portanto a votar contra a repetição do mesmo erro pelo seu país de berço, pelo país em que foram concebidos e nasceram.

D) uma escolha entre a lei actualmente vigente de despenalização relativa/condicionada do aborto, sujeita a condições legalmente previstas, e a despenalização total ou liberalização até às 10 semanas.

Os editores saúdam as inteligentes e bem fundamentadas declarações apresentadas pelos Meretíssimos Juízes Conselheiros Rui Manuel Moura Ramos, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Paulo Mota Pinto, Benjamim Rodrigues, Mário José de Araújo Torres e Carlos Pamplona de Oliveira que, apesar de vencidos, contribuiram de forma notável e até corajosa para o prestígio da Justiça Portuguesa.

LUÍS BOTELHO RIBEIRO

VÍTOR EMANUEL PEREIRA

Paredes, 5 de Janeiro de 2007


I RAZÃO CONSTITUCIONAL: INVIOLABILIDADE DA VIDA HUMANA

ao possibilitar a realização da interrupção voluntária da gravidez, “por opção da mulher, nas primeiras dez semanas”, se lesa, de forma constitucionalmente insuportável, o princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado no artigo 24º, nº 1 da Constituição. [...] O que já contrariará a Constituição, pelo contrário, será uma solução legislativa que, num dado período (dez semanas, no texto da pergunta), permita o sacrifício de um bem jurídico constitucionalmente protegido, por simples vontade da mãe, independentemente de toda e qualquer outra consideração ou procedimento. [...] ao fazer prevalecer sempre, em todos os casos e independentemente das circunstâncias, o que se designa por “direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher”, se está afinal a postergar completamente a protecção da vida intra-uterina que cremos ser objecto de tutela constitucional.

Rui Manuel Moura Ramos

incerteza do significado de uma resposta positiva [...] pois a diferença entre a liberalização e a simples despenalização do aborto tem decerto profundas implicações constitucionais.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

poderia talvez defender que a simples descriminalização é compatível com o princípio da inviolabilidade da vida humana, [...] já, porém, a liberalização, no sentido de tornar a interrupção voluntária da gravidez um acto lícito não condicionado por qualquer causa justificativa, me parece inconciliável com o princípio da inviolabilidade da vida humana

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

a vida humana pré-natal é abrangida pela garantia de inviolabilidade constante do artigo 24.º da Constituição. [...] esta norma não se limita a garantir um direito fundamental à vida a todas as pessoas, mas consagra igualmente uma tutela não subjectivada do bem “vida humana em formação”, e [...] impõe igualmente ao legislador um correspondente dever de protecção.

Paulo Mota Pinto

a inegável importância do bem ‘vida humana’, como pressuposto necessário de todos os outros direitos [...] , e [...] o seu carácter de comando [...] sempre requerem, pelo menos, a verificação da existência de um direito em conflito com esse bem (…), assim como a definição, pelo legislador, das circunstâncias em que a ponderação pode conduzir a uma limitação da tutela da vida humana intra-uterina”.

Paulo Mota Pinto

O que não acompanho é a conclusão de que a afirmada “concordância prática” entre a liberdade, ou o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, da mulher e a protecção da vida intra-uterina “possa conduzir a desproteger inteiramente esta última nas primeiras dez semanas (durante as quais esse bem é igualmente objecto de protecção constitucional), por a deixar à mercê de uma livre decisão da mulher, que se aceita será lícita, em abstracto, ou seja, independentemente da verificação de qualquer motivo ou indicação no caso concreto”.

Paulo Mota Pinto

não concordo [...] que[...] a Constituição permita chegar a uma “solução dos prazos”, com aceitação da total “indiferença dos motivos” ou de uma “equivalência de razões” para proceder à interrupção voluntária da gravidez, para a qual todas as razões podem servir – “quer seja realizada por absoluta carência de meios económicos e de inserção social, quer seja motivada por puro comodismo, quer resulte de um verdadeiro estado depressivo da mãe[...]

Paulo Mota Pinto

a garantia da inviolabilidade da vida humana, [...] há-de ter, pelo menos, o conteúdo de tutelar o bem em causa contra a liberdade da mulher de prática de ‘aborto a pedido’, sem invocação de qualquer motivo e, em princípio, com indiferença deste para a ordem jurídica” – tendo igualmente por inconstitucional a solução de total liberdade da mãe quanto ao «destino» de uma vida humana que já iniciou o seu percurso[...]

Paulo Mota Pinto

a resposta afirmativa à pergunta formulada [...] implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição.

Benjamim Rodrigues

admitido como está, pelo acórdão e por todos os vencidos, que a vida humana intra-uterina goza de protecção constitucional, [...] não deixa de impressionar-nos que o acórdão perspective a tutela de inviolabilidade da vida humana [...] desligada do ser que constitua o seu titular, acabando por reduzir, subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto critica, o seu âmbito de protecção apenas aos fetos com mais de 10 semanas de gestação e às pessoas nascidas.

Benjamim Rodrigues

não vemos [...] que tenha sentido falar-se de inviolabilidade da vida humana sem ser por referência ao ser que dela seja titular, seja este ser já uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser pessoa

Benjamim Rodrigues

o acórdão não realizou qualquer juízo de concordância prática entre os dois valores ou direitos constitucionais, tidos como estando em conflito: o direito do ser, “embrião/feto humanos”, a nascer e a “liberdade da mulher a manter um projecto de vida, como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade”. E não efectuou, porque [...] rejeita a titularização [...] do direito à vida humana e, decorrentemente, do conteúdo essencial do direito do feto a nascer, admitindo a possibilidade de, sem censura penal, lhe tirar a vida humana.

Benjamim Rodrigues

nunca a colisão de direitos constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador ordinário, com base num critério normativo de prevalência da liberdade da mulher a manter um projecto de vida à custa da morte do feto, titular constitucional de vida humana e da respectiva dignidade. A operação de concordância prática entre direitos constitucionais, posicionados como estando em conflito, demanda a realização de um juízo de ponderação (legislativa ou judicial) que dê satisfação ao princípio constitucional da máxima efectividade de protecção dos direitos e garantias fundamentais. Tal equivale por dizer que esse juízo [...] nunca poderá chegar a um resultado de eliminação de um deles em favor do outro, pois, neste caso, está-se, radicalmente, a eliminar o conteúdo essencial do preceito constitucional que reconhece a inviolabilidade da vida humana, na sua expressão de direito do titular da vida humana uterina a nascer [...]

Benjamim Rodrigues

Cada situação de gravidez gera uma situação de existência de um concreto titular do direito à vida humana a nascer. O direito à vida humana é protegido pela Constituição (art.º 24.º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo “inviolável” só poderá significar que se trata de um direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de exclusão que consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação, como sejam as causas constitucionais de desculpabilização ou de justificação. Trata-se, deste modo, de um direito ou garantia constitucional que se encontra dotado de uma especial força de tutela constitucional. E bem se compreende que o seja, porquanto se trata de um direito fundante de todos os outros, de um direito que é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem titulares de vida humana não poderá falar-se em dignidade humana ou sequer constituir-se comunidade organizada em Estado de direito democrático.

Benjamim Rodrigues

O aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do concreto embrião/feto. [...] Pelo contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que adapte, para o futuro, o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer por força de muitas outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como, por exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc.

Benjamim Rodrigues

Ela continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o poder exercer e manifestar, repetidamente, em todas as outras condições da sua vida. Seguindo a lógica do acórdão, a mulher grávida manterá a sua liberdade de desenvolver o seu projecto de vida quantas as vezes que optar pela interrupção da gravidez. Porém, em todas essas vezes, ocorrerá a extinção do direito à vida humana de um concreto titular – o concreto feto em gestação.

Benjamim Rodrigues

Nesta linha de pensamento, há-de convir-se que a interrupção voluntária de gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, assume tão só a natureza de um simples meio de contracepção ou mesmo de planeamento familiar cuja determinação do concreto conteúdo corresponde a um direito absoluto da mulher grávida, fazendo irrelevar, para o concreto embrião/feto, qualquer protecção constitucional do seu direito à vida humana, consagrado no art.º 24.º, n.º 1, da CRP.

Benjamim Rodrigues

a concepção do acórdão assenta numa ideia de completa liberalização do aborto, condicionando-o a condições que visam apenas acautelar o aspecto de saúde da mulher abortanda e não em qualquer ideia de que deve ser efectuada uma ponderação de direitos ou valores: contra a vontade, de livre opção, da mulher de abortar, nas primeiras 10 semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, nada (absoluto) se pode opor [...] podendo ser levada a cabo, sem censura penal, num limite em que o feto tem até já forma humana (desde as 8 semanas)

Benjamim Rodrigues

Depois a tese do acórdão sofre de um verdadeiro ilogismo: é que os direitos cuja existência alega, apenas, constituirão direitos para quem tiver a sorte de não ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titulares de direito à vida humana que tenham nascido.

Benjamim Rodrigues

a resposta afirmativa é susceptível de conduzir a uma solução jurídica inconstitucional.

Mário José de Araújo Torres

A inconstitucionalidade da solução legislativa derivada de eventual resposta positiva vinculativa ao referendo. [...] Apesar da notória divisão de posições revelada pelos quatro acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional sobre a problemática do aborto [...], num aspecto crucial verificou‑se unanimidade por parte dos 31 juízes das diversas formações que subscreveram esses acórdãos: todos eles, nemine discrepante, assumiram que a vida intra‑uterina constitui um bem constitucionalmente tutelado, donde deriva a obrigação do Estado de a defender.

Mário José de Araújo Torres

O que se me afigura constitucionalmente inadmissível [...] é admitir que, embora na fase inicial de desenvolvimento do feto, se adopte solução legal que represente a sua total desprotecção, com absoluta prevalência da “liberdade de opção” da mulher grávida, sem que o Estado faça o mínimo esforço no sentido da salvaguarda da vida do feto, antes adoptando uma posição de neutral indiferença ou, pior ainda, de activa promoção da destruição dessa vida.

Mário José de Araújo Torres

No presente caso, a meu ver, não apenas uma das soluções possíveis, mas até a solução que directamente resultará da resposta afirmativa, se se converter a formulação literal desta em artigo de lei, é inconstitucional, atenta a completa falta de intervenção do Estado na tutela da vida intra‑uterina, bem constitucionalmente protegido, que exigiria, no mínimo, a imposição da obrigatoriedade de uma consulta de aconselhamento e de um período de reflexão antes da consumação do aborto. Ora, em vez dessa intervenção para salvaguarda da vida, de tal solução resultará, nem sequer uma posição de neutralidade ou de indiferença do Estado (que já seria criticável), mas inclusivamente uma posição de promoção do aborto, através da facilitação da sua prática, por mera opção da mulher grávida, sem invocação de motivos, nos serviços públicos de saúde, tendencialmente gratuitos.

Mário José de Araújo Torres

entendo que uma resposta positiva à pergunta determina violação do n.º 1 do artigo 24º da Constituição.

Carlos Pamplona de Oliveira

se a Constituição [...] protege, sem excepção, a vida humana, é necessário que se conclua que esse dever de protecção legal se estende a todas as formas de vida humana e, portanto, à vida intra-uterina. O que não significa que se imponha um grau de intensidade necessariamente igual na protecção de todas as formas de vida. Significa, isso sim, que se me afigura constitucionalmente desconforme que se retirem completamente todos os obstáculos legais à morte da vida intra-uterina, nesse período de 10 semanas.

Carlos Pamplona de Oliveira

II DISSUASÃO EFICAZ POR VIA PENAL

“défice” de tutela de um bem cuja protecção é constitucionalmente assegurada

Paulo Mota Pinto

não se divisam outros meios a que o legislador possa recorrer para proteger esse bem, afirmando a sua dignidade ética para a comunidade [...] a protecção penal é, apesar de tudo, a única que se pode revestir de alguma eficácia [...] a questão submetida a apreciação não contende directamente com a da punibilidade do aborto clandestino, não sendo sequer líquido que uma resposta positiva viesse a contribuir para a diminuição deste, ou, muito menos, para a diminuição geral do número de abortos

Paulo Mota Pinto

o direito à liberdade da mulher, bem como o direito ao “livre desenvolvimento da personalidade” [...] não são suficientes para fundamentar a desprotecção da vida pré-natal, mesmo nas primeiras dez semanas, se não forem reforçados com a presença de uma indicação no caso concreto. E isto, não curando sequer de saber qual o tipo de indicação que seria constitucionalmente relevante ou a quem deve competir avaliá-la – pressuposto apenas que não basta a mera opção da mãe, desvinculada de qualquer controlo exterior.

Paulo Mota Pinto

O que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do direito à vida (uterina e pós-uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo [...] os princípios gerais de direito criminal. [...] O que a Constituição reclama é que, salvo a existência de causas de desculpabilização ou de justificação, a vida seja penalmente protegida.

Benjamim Rodrigues

o argumento de que não existe “uma linha de inflexível necessidade lógica”[...] entre a definição da inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal, [...] assenta sobre uma patente incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para afastar a intervenção penal são já institutos que pressupõem, necessariamente, a existência dessa protecção penal.

Benjamim Rodrigues

pretende‑se passar de uma situação de “crime punível”, não a uma situação de “crime não punível”, mas a uma situação de “não crime”, de “não ilícito” e de “direito a prestação do Estado”.

Mário José de Araújo Torres

não pode deixar‑se de considerar inconstitucional um sistema que, na parte em que acolhe o método dos prazos, não o condicione a um sistema de aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida. Na verdade, após se reconhecer que a vida intra‑uterina constitui um valor constitucionalmente tutelado, cuja defesa incumbe ao Estado, é contraditório e incongruente considerar constitucionalmente aceitável uma solução em que a vida do feto é sacrificada, por mera opção da mulher, sem que o Estado tome qualquer iniciativa nesse domínio, a mínima das quais seria condicionar o aborto à obrigatoriedade de aconselhamento e de um período de reflexão. Aconselhamento este que [...] não surge como mecanismo estranho à solução penal [...] mas antes se insere no estrito domínio penal, como condição da não incriminação ou punição do aborto.

Mário José de Araújo Torres

III A PERGUNTA DO REFERENDO

o inciso final [...] “em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”, [...] a sua inclusão [...] é susceptível de ser vista como induzindo uma resposta afirmativa. [...] Dúvida que poderia aliás ser facilmente esclarecida se se falasse em “estabelecimento de saúde a autorizar”.

Rui Manuel Moura Ramos

no sistema proposto, o bem jurídico vida é, sempre e independentemente das circunstâncias, desconsiderado nas primeiras dez semanas, não lhe sendo nunca pois, em tal período, dispensada qualquer protecção. É por conduzir assim [...] a essa total desconsideração do bem de vida [...] sejam quais forem os motivos que levam à decisão da mãe, que entendemos que o sistema proposto contraria o imperativo de protecção da vida intra-uterina constitucionalmente consagrado

Rui Manuel Moura Ramos

entendo que a pergunta não satisfaz [...] os requisitos constitucionalmente exigidos de objectividade, clareza e precisão.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

a pergunta sugere uma escolha entre penalização e despenalização que não exprime a alternativa emergente dos debates que lhe deram origem, e que se coloca entre a despenalização relativa da lei actual e a despenalização absoluta até às dez semanas de gravidez.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

as exigências [...] de que as perguntas objecto de referendo sejam formuladas com objectividade, clareza e precisão, são cruciais para assegurar a correcção e a idoneidade democrática do procedimento referendário. Elas visam permitir aos eleitores a leitura e compreensão acessível e sem ambiguidades da pergunta, evitando “que a vontade expressa dos eleitores seja falsificada pela errónea representação das questões” e eliminando a possível sugestão de respostas, directa ou implícita

Paulo Mota Pinto

a pergunta proposta não satisfaz o requisito de objectividade [...] por o enquadramento na frase da expressão “em estabelecimento legalmente autorizado” se afigurar susceptível de conduzir a um enviesamento da resposta. [...] Com efeito, “a condição contida nesta parte final da pergunta pressupõe a existência de estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, mas estes só existirão em caso de resposta positiva à própria pergunta posta à consideração do eleitorado. A hipótese da pergunta pressupõe, pois, uma resposta positiva, e pode predispor a esta resposta por se entender que, existindo estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez nas condições definidas, seria paradoxal penalizar esta interrupção”. A meu ver, este ponto pode, pelo menos, continuar a despertar dúvidas ao leitor que ignore o estado actual da nossa legislação, no que toca à inexistência de tal autorização legal

Paulo Mota Pinto

ficaram-me novamente dúvidas quanto à clareza do termo “despenalização”[...] em relação à possível permanência do juízo de ilicitude do aborto (embora sem pena, ou, mesmo, fora do domínio criminal).

Paulo Mota Pinto

a pergunta formulada aos eleitores não é clara e objectiva. Assim, suscitam-se-nos ponderadas dúvidas sobre a clareza da pergunta na medida em que tal qual a pergunta é feita, esta supõe que o eleitor, para poder fazer um juízo ponderativo-decisório, conheça qual o regime vigente quanto à penalização da interrupção voluntária de gravidez e, nomeadamente, as suas actuais causas de desculpabilização e de justificação. Ora, parte relevante dos eleitores não será detentora de tais conhecimentos. Além de que, a pergunta faz apelo a conceitos de matriz técnico-jurídica [...] cuja inteligibilidade escapa a grande parte do colégio eleitoral, bem podendo, por isso, gerar a dúvida aos eleitores sobre se eles não estão assumidos na proposta em sentido diferente daquele pelo qual essa realidade empírica é expressada comummente, em linguagem vulgar, mas que é a seguida, normalmente, na comunicação política: aborto e completa liberalização dentro das 10 primeiras semanas, desde que a mulher o queira e o mesmo seja efectuado em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.

Benjamim Rodrigues

a referência a “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”, [...] deixa entender que a condição apenas existirá no caso prevalecer a resposta positiva, dado esse acto, nas condições propostas, não ser hoje autorizado em qualquer estabelecimento de saúde, predispondo por isso a uma tal resposta para que a condição seja possível.

Benjamim Rodrigues

sugere uma ideia de completa inexistência de quaisquer outros valores constitucionais ou legais que tenham de entrar em confronto com a opção da mulher, ou seja, uma ideia de completa liberalização do aborto, desde que realizado dentro do prazo das 10 semanas e em estabelecimento de saúde autorizado.

Benjamim Rodrigues

a formulação da pergunta não satisfaz os requisitos constitucionais e legais da clareza e da objectividade;

Mário José de Araújo Torres

a pergunta ora em apreciação não é clara quando utiliza a expressão “em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”, e não é objectiva quando usa a expressão “despenalização da interrupção voluntária da gravidez”.

Mário José de Araújo Torres

a pergunta a formular, para ser objectiva, teria, no mínimo, de referir a intenção de “deixar de constituir crime” tal conduta

Mário José de Araújo Torres

quer na discussão pública em curso sobre este tema, quer [...] na apresentação parlamentar [...] se tem sistematicamente insistido na associação desta iniciativa ao propósito de pôr termo à perseguição criminal, julgamento, condenação e prisão das mulheres grávidas que pratiquem aborto. E o uso da expressão “despenalização”, na pergunta, pode propiciar o entendimento de que é esse propósito que se visa alcançar, o que não corresponde à realidade. Na verdade [...] a aprovação da medida legislativa que resultará de eventual resposta positiva vinculativa ao referendo surge como inadequada, por defeito e por excesso: por defeito, porque não evitará a perseguição criminal das mulheres que pratiquem aborto para além das 10 semanas fora das indicações do artigo 142.º do Código Penal e ainda das que pratiquem aborto [...] fora de estabelecimento de saúde legalmente autorizado; por excesso, porque exclui da incriminação, não apenas as mulheres grávidas, mas todos os intervenientes no acto em causa.

Mário José de Araújo Torres

perante os termos em que está formulada a pergunta do referendo, se a lei aprovada na sua sequência não contemplar esse condicionamento (e [...] é mesmo questionável que o possa inserir), ela não poderá ser vetada pelo Presidente da República nem sujeita a fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional com o fundamento de ser inconstitucional a não consagração do aconselhamento obrigatório como condição de não punibilidade.

Mário José de Araújo Torres

entendo, essencialmente, que a pergunta formulada não espelha com clareza, precisão e objectividade – como a Constituição impõe – a matéria que é colocada à consideração dos cidadãos

Carlos Pamplona de Oliveira

É, assim, essencial – ao fim e ao cabo para garantir a genuinidade da resposta dos cidadãos –, que a pergunta seja absolutamente clara e objectiva, não só na sua locução gramatical, mas também no seu conteúdo, expondo a questão por forma a permitir a sua completa apreensão. Não é, a meu ver, o caso em presença, pois a pergunta não esclarece, nem deixa espaço para que se perceba, que, actualmente, a lei já não penaliza sempre a interrupção voluntária da gravidez [...] Em suma, a pergunta pode falsamente fazer concluir que o tratamento jurídico do aborto se desenvolve na dicotomia crime/descriminalização, sem ocorrência de situações justificativas de não punibilidade já previstas no actual sistema legal. Ao colocar deficientemente os dados da questão, a pergunta não é, a meu ver, precisa nem objectiva.

Carlos Pamplona de Oliveira

IV UNIVERSO ELEITORAL

a participação dos portugueses no estrangeiro [...] justifica-se pela particular ligação destes [...] à vida nacional e pela circunstância de a questão a decidir integrar como que o património cultural da comunidade em que se têm por inseridos.

Rui Manuel Moura Ramos

deve entender-se [...] que nas matérias que digam “também especificamente respeito” aos cidadãos não residentes se incluem ainda aquelas que são susceptíveis de interessar a estes ao mesmo título que aos cidadãos que residem em Portugal, ou simplesmente as que não respeitem a um interesse específico destes cidadãos residentes. [...] Considerei, pois, que era de exigir o chamamento dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro a participar no presente referendo.

Paulo Mota Pinto

Votei, ainda, com dúvidas quanto à questão do universo subjectivo eleitoral. [...] podendo argumentar-se que, estando em causa uma alteração tão profunda ao sistema de valores jurídicos do direito pátrio, essa alteração não é de todo indiferente à situação dos portugueses residentes no estrangeiro, enquanto cidadãos que tendem a reger a sua vida por esses valores e esse direito e deles dão expressão nos locais onde vivem. [...] Tal solução seria postulada, de resto, pela mesma lógica substancial que justifica a participação dos portugueses residentes no estrangeiro nas eleições para o cargo de Presidente da República

Benjamim Rodrigues

é injustificada a restrição do “universo eleitoral” aos eleitores residentes no território nacional;

Mário José de Araújo Torres

a CRP (artigo 115.º, n.º 12) não restringe a participação dos cidadãos residentes no estrangeiro aos referendos sobre matéria que apenas lhes diga especificamente respeito, mas sim sobre matéria “que lhes diga também especificamente respeito”. [...] a matéria em causa no referendo, como o evidencia a intensidade do debate público que a tem rodeado ao longo de um já dilatado período de tempo, está directamente ligada à definição dos valores fundamentais estruturantes da comunidade nacional, problemática que não pode deixar de afectar os portugueses que, apesar de residentes no estrangeiro, têm manifestado laços de efectiva ligação à comunidade nacional e revelado interesse actual na intervenção directa na vida política nacional. Não se vislumbra motivo justificado para excluir este grupo de cidadãos portugueses da participação num referendo que, atenta a matéria sobre que versa, também lhes diz especificamente respeito, e no qual, aliás, irão participar cidadãos estrangeiros residentes em Portugal

Mário José de Araújo Torres

V OUTROS ASPECTOS

Votei [...] sem prejuízo de ulterior reponderação da questão de [...] apreciar se a pergunta formulada não coloca os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica inconstitucional.

Maria João Antunes

o presente aresto se recusou a considerar concretamente quaisquer elementos científicos, como os emergentes da chamada “revolução ecográfica”, relativos à caracterização do feto nas suas diversas fases de desenvolvimento

Paulo Mota Pinto

subjacente “à afirmação da licitude da interrupção voluntária da gravidez com base na garantia de uma maternidade consciente parece-me estar uma visão do aborto como meio de contracepção, ou, mesmo, de planeamento familiar, que não considero constitucionalmente admissível

Paulo Mota Pinto

movidas pelo intuito de atalhar a qualquer alteração do regime vigente num sentido mais restritivo – àquilo que (destoando numa decisão judicial que, além do mais, tem de pronunciar‑se sobre a objectividade da pergunta referendária) o Acórdão qualifica, noutro passo (n.º 5), como um “retrocesso” num sentido criminalizador.

Paulo Mota Pinto

O direito à vida humana de qualquer titular constitucional que ele seja, nascido ou não nascido, porque a Constituição os não distingue, é um direito fundante do Homem e da sociedade organizada. Na mesma situação se encontra, por exemplo, a protecção do princípio democrático do Estado de direito. Sem protecção do princípio democrático do Estado de direito, por todos os meios constitucionalmente permitidos, este não poderá existir e subsistir. Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de utilizar na sua protecção a última ratio – o direito criminal.

Benjamim Rodrigues

O reconhecimento da dignidade constitucional da vida intra‑uterina (comum, aliás, à generalidade das pronúncias de diversos Tribunais Constitucionais [...] é independente de concepções filosóficas ou religiosas sobre o início da vida humana

Mário José de Araújo Torres

na vida intra‑uterina manifesta‑se “uma forma de vida que, desde logo, contém um acabado programa genético, único e irrepetível, o qual, se entretanto não conhecer destruição, culminará, inevitavelmente, com o nascimento de um ser humano” (citação da declaração de voto do Cons. Tavares da Costa aposta ao acordão 288/98)

Mário José de Araújo Torres

admitiria considerar não inconstitucional uma solução legislativa que, no período inicial da gestação, acabasse por conceder prevalência à opção da mulher grávida, desde que fosse associada à imposição de um sistema de aconselhamento, designadamente se este aconselhamento não fosse um aconselhamento meramente informativo, mas antes um aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida.

Mário José de Araújo Torres

não vigora em Espanha um sistema “liberal”, perante o qual seria chocantemente contrastante o “limitado” sistema português. O sistema legal espanhol é estritamente um sistema de indicações. O que ocorre é que, na prática, uma interpretação latíssima da indicação relacionada com a “saúde psíquica” da mulher grávida conduziu a uma permissividade na prática do aborto, sobretudo em “clínicas privadas”, que têm como objecto exclusivo do sua actividade a prática abortiva

Mário José de Araújo Torres

na Alemanha [...] a possibilidade de prática de aborto, nas primeiras 12 semanas, a pedido da mulher, está dependente de aconselhamento obrigatório especificamente dirigido à protecção da vida embrionária e fetal, [...] “O aconselhamento serve a protecção da vida que está por nascer. Deve orientar‑se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança. Deve ajudá‑la a tomar uma decisão responsável e em consciência. A mulher deve ter a consciência de que o feto, em cada uma das fases de gravidez, também tem o direito próprio à vida e que, por isso, de acordo com o sistema legal, uma interrupção da gravidez apenas pode ser considerada em situações de excepção, quando a mulher fica sujeita a um sacrifício que pelo nascimento da criança é agravado e se torna tão pesado e extraordinário que ultrapassa o limite do que se lhe pode exigir.”

Mário José de Araújo Torres


EXCERTO DO ACÓRDÃO N.º 617/2006 - Processo nº 924/2006

Propõe a realização de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher nas primeiras 10 semanas [...]

IV - Decisão

38. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:

1º Considerar que

a) A proposta de referendo constante da Resolução nº 54‑A/2006 da Assembleia da República foi aprovada pelo órgão competente para o efeito, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa;

b) O referendo proposto tem por objecto questão de relevante interesse nacional que deve ser decidida pela Assembleia da República através de acto legislativo, conforme se preceitua no nº 3 do mesmo artigo;

c) A matéria sobre que ele incide não se encontra excluída do âmbito referendário, de acordo com o estabelecido no nº 4 do mencionado artigo 115º;

d) O referendo proposto recai sobre uma só matéria, através de uma só pergunta, sem quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas, sendo a questão formulada para uma resposta de sim ou não e cumprindo, nestes aspectos, as exigências constantes do nº 6 do artigo 115º da Constituição e do artigo 7º da Lei Orgânica do Regime do Referendo;

e) A pergunta formulada satisfaz os requisitos de objectividade, clareza e precisão, enunciados nas mesmas disposições;

f) A proposta de referendo respeitou as formalidades especificadas nos artigos 10º a 14º da Lei Orgânica do Regime do Referendo;

g) A restrição da participação no referendo aos cidadãos residentes em território nacional cumpre os requisitos do universo eleitoral prescritos no nºs 1 e 12 do artigo 115º da Constituição;

h) O Tribunal Constitucional, no âmbito da verificação prévia da constitucionalidade do referendo, a que se refere a alínea f) do nº 2 do artigo 223º da Constituição, é competente para apreciar se a pergunta formulada não coloca os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica inconstitucional;

i) Nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição.

2º Consequentemente, ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na mencionada Resolução nº 54‑A/2006, da Assembleia da República.

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